Com o modelo biomédico mecanicista, generalizador e tecnicista, a Nutrição tem a finalidade de prevenir e combater a doença, centrando-se em quantidades e horários da ingestão de alimentos a fim de estabelecer uma vida com o mínimo de risco possível de adoecimento. Entretanto, dessa forma o caráter pluridimensional da comida é perdido no paradigma científico e o ser humano perde sua integralidade individual e a comunicação com a sociedade.

Com isso, a nutrição atual apresenta profissionais restritos a um olhar reducionista, afastando-os da subjetividade, dos sentidos e significados do alimento. A alimentação envolve a subjetividade, a interioridade, as histórias de vida, os relacionamentos, a família, a cultura e até mesmo o cenário político e econômico, caminhar sem entender tudo isso é ir para o lado oposto do que atualmente é considerado saúde.

É preciso ressaltar que não se trata de desconsiderar as propriedades nutricionais dos alimentos e suas implicações à saúde ou ainda as bases biológicas da natureza, mas sim de mesclar a ciência com a subjetividade, o sociocultural. Tanto que os conceitos de patologia, normalidade e doença apresentam uma flexibilidade entre o organismo e seu ambiente, este marcado por construções e valores sociais. Assim, o adoecimento não é um fenômeno puramente objetivo, ou seja, do organismo biológico. A saúde também não seria a ausência do adoecimento, mas um convívio harmônico e equilibrado com a doença.

Antigamente, a cura era subjetiva, com um olhar compassivo, a escuta sensível e a percepção do sujeito. Contudo, com o tempo, a cura se transformou a localizar a doença e olhar a doença, não o paciente. É certo que houve uma evolução gigantesca da Medicina do passado para a atual, todavia, não deveria ser perdido o modo como a cura era vista, mesclando o presente e o passado.

O biopoder foi essencial para o desenvolvimento do capitalismo e podemos vê-lo presente até hoje com relação a alimentação saudável. “Corpos individuais devem ser vigiados, treinados e eventualmente punidos.” essa frase soa como histórica e antiga, todavia, é exatamente isso que acontece com a nutrição de hoje em dia. Ou seja, a biopolítica da espécie humana estabelece mecanismos para preservação da vida e normalização do comportamento. Dessa forma, a biomedicina e a biopolítica determinam o pensar e agir adequados para a sociedade.

A Biomedicina nos diz o que comer, o que e como se exercitar, como controlar o peso, a ingestão de calorias, sódio, açúcar e gorduras, o que beber e o que não beber, como regular o prazer, a regularidade de exames, o uso de medicamentos e tratamentos, etc. Sempre necessário consultar-se com um médico, na ausência ou não de doença ou sintomas, sendo o equilíbrio, a prevenção e a moderação as palavras de ordem para que não comprometa sua produtividade e quebre o sistema.

Na nutrição, a alimentação tem um caráter dietoterápico com relação às necessidades individuais, prescrevendo moderação e controle da ingestão de alimentos energéticos, ricos em sódio, gorduras saturadas e trans e incentivando o consumo de fibras, vitaminas e minerais.

As indústrias de alimentos criam cada vez mais novos rótulos: diet, light, sem glúten, sem lactose, sem açúcar, baixo carboidrato, entre outros termos que atraem o consumidor. A ciência e a tecnologia se beneficiam disso, desenvolvendo alimentos baseados em recomendações nutricionais e no imaginário simbólico das pessoas capaz de fazer o ideal de saúde se tornar realidade, sendo o alimento visto como medicamento.

As políticas públicas em alimentação e nutrição, recomendam e convencem que precisamos trocar o consumo de alimentos ditos como pouco saudáveis devido a componentes alimentares específicos, como gorduras trans, açúcares livres e sódio, para alimentos mais saudáveis, como frutas, hortaliças e cereais integrais. Além disso, recomenda-se manter um equilíbrio energético e um peso normal mantendo-se dentro de uma faixa de normalidade de peso determinada pelo Índice de Massa Corporal (IMC), o qual apresenta limitações e críticas. Assim, a alimentação saudável tem um valor idealizado para um indivíduo idealizado, materializado em um padrão social.

Assim, o comer saudável deve obedecer às regras nutricionais e prática das normas, para manter-se normal, ou seja, livre de doenças e no padrão. Entretanto, esse é um ideal que ignora o sujeito, sua história de vida, seu prazer, desejos e fobias, reduzindo-se a contagem de calorias e nutrientes e esquecendo-se que a comida é um símbolo cultural, familiar, social e existencial.

 

Texto por João Motarelli e Julia Tott Mormillo

 

KRAEMER, F. B.; PRADO, S. D.; FERREIRA, F. R.; CARVALHO, M. C. V. S. O discurso sobre a alimentação saudável como estratégia de biopoder. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 24 [4]: 1337-1359, 2014.

 

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